Reis | No Silêncio de Deus | E-Book | sack.de
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E-Book, Portuguese, 264 Seiten

Reis No Silêncio de Deus


1. Auflage 2012
ISBN: 978-972-20-4263-5
Verlag: D. QUIXOTE
Format: EPUB
Kopierschutz: 0 - No protection

E-Book, Portuguese, 264 Seiten

ISBN: 978-972-20-4263-5
Verlag: D. QUIXOTE
Format: EPUB
Kopierschutz: 0 - No protection



Um escritor descobre que está a morrer. Uma jornalista tenta desvendá-lo. Ambos procuram a redenção. Encenam uma fuga à realidade. Três cidades: Lisboa, Jerusalém, Amesterdão. E ainda uma prostituta, um barman, um médico homeopata. A possibilidade da salvação e a procura da humanidade. As falhas de cada um. O passado como identidade. Um fado. Vários livros. Dor e consternação. No fim, sem medo, uma ideia melhor.

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   O sexo é louvado pelos mais novos porque é a forma de transmitir fisicamente o imenso medo de não se ter futuro. Sara preferia esta análise. Quem tem medo, fornica. Quem não sabe ao que anda, fornica. Quem não quer nada, fornica.
   Sara estudava com afinco. A euforia do sexo nunca a motivara. Não sabia entender-se nessa troca de fluídos. Gostava da conversa depois do sexo. Das frases curtas, preguiçosas, a espreitar a realidade depois da comoção dos corpos. Gostava, sobretudo, disto: a conversa. Tendo sobrevivido à neurose da mãe, depois de uma adolescência sem rebeldia, a faculdade era apenas a promessa cumprida de viver na grande cidade, certa de que Lisboa nada seria se ela não fizesse a cidade viver.

Só existem as coisas que quero que existam. Se eu as pensar, elas existem. Se eu as desconhecer, não têm importância. A voz na minha cabeça faz com que eu seja única, nada existe para lá de mim, da minha envolvência. Somos autistas do mundo e eu sou quem comanda o mundo. Sou o comando mestre de um programa informático que Deus criou quando criou o mundo. Posso.

   Sara encenava para si esta ideia. Em frente ao espelho, analisando-se com cautela, à espreita de um sinal que denunciasse a loucura da mãe, a ternura do pai. Justificava-se diariamente. Ao espelho.
   O namorado dizia que ela não tinha ética pessoal. Não se considerava um ser humano com direitos adquiridos inerentes a essa condição básica de se ser. Só ser. Sara podia discordar e contar-lhe toda uma história de verdades que reduzem a humanidade a um ponto preto no céu azul-claro, um avião em contraluz.
   Será que se tem frio quando se morre?
   Ela perguntava estas coisas para si, mesmo quando as perguntava em voz alta. Está mal habituada, o pai respondia-lhe a tudo; entre as lápides velhas dos cemitérios, o pai era capaz de dissertar sobre a vida, a morte, o sexo. A relação deles era – descobriu na faculdade – um compêndio de comunicação multimodal: ele a falar por gestos, por sinais só visíveis para ela; ele a imitar um som animal para estarem alerta, uma brincadeira só deles; ela a dançar e a rir para mostrar que apesar de tudo, da mãe e dos gritos, a vida era e isso bastava.

Tudo se resume ao verbo ser.

   Sara considerava apenas o que era no preciso momento em que era. Por isso, o amor era um acto que, exceptuando o aspecto físico, podia ser ou não ser no momento seguinte. Não era necessário. Nada era necessário. Talvez o futuro fosse necessário. Sara tinha momentos, em frente ao espelho, na introspecção diária da sua existência, aquela que imaginava maior do que na realidade era, em que não sabia nada. Sentia que tudo lhe escapava.
   Os anos da faculdade coincidiram com o cancro do pai e as visitas ao Instituto Superior de Oncologia, essa prisão de histórias e milagres. Sara aprendeu aí as limitações do corpo e da linguagem. Não havia palavras para tanto transtorno. Cada metro quadrado do hospital carregava mais dor do que seria possível imaginar. Sara deixava o namorado no café e ia ver o pai sozinha.
   Há coisas que tenho de fazer sozinha.
   Tu fazes tudo sozinha.

Sara ponderava, enquanto subia os degraus até ao quinto andar, o suor a crescer nas axilas, debaixo dos seios, se faria diferença crer em Deus. Ela que abominava a ideia de que o Deus dos judeus os declarara o povo eleito e, por isso, sofredor. O pai sempre lhe dissera que ser judeu era seguir uma crença de coração, ter uma história. E ela ria e dizia que o seu interesse estava no imediato, que na história se perdia, que Deus tinha de estar no aqui e agora e não apenas no sempre. Deus não era uma fotografia de um campo de exilados nas Caldas da Rainha, os avós judeus polacos que iam à praia à Foz do Arelho nos ridículos fatos de banho completos, barracas para cobrir o corpo do sol e dos olhares de todos. Sara sabia a história, mas era como se não fosse a história dela. Nada daquilo podia estar no seu sistema, nas suas veias, no seu ADN. O apelido judeu era uma graça. Não tinha importância. Ser judeu vem de dentro, da casa, da mãe, dos rituais e da prática, da tradição que se segue. A mãe de Sara estava demasiado longe para a educar assim. O pai estava demasiado ocupado a fazê-la rir para não ver o resto e só terminou a sua tarefa quando o entubaram, e já não conseguia soltar o riso.

   Então, pai, como se sente?

Uma merda de uma pergunta. Uma pergunta sem resposta. O médico vinha, apaziguador, fazer conversa. Sentava-se na beira da cama. Contava, com orgulho e calma, que o pai respirara para uns sacos especiais e que esse ar serviria para treinar os cães da Guarda Republicana para identificar o odor do cancro. Sara imaginou cães pelo país, cães a farejar, a saber que as pessoas têm cancro antes de qualquer exame, de qualquer TAC ou raio X. Para que servia isso? Para que servia o esforço de soprar para dentro desses sacos? Para que servia treinar os cães? Sara quis perguntar, mas não se atreveu porque o orgulho do médico era quase soberba e porque a soberba lhe pareceu dolorosa de enfrentar. O pai mirrado na cama de metal branco, lençóis brancos como uma mortalha, o pai a olhar alternadamente para ela e para o médico, para o médico e para ela. Por uns instantes, Sara achou que o pai iria surpreendê-los com uma tirada, uma citação, um episódio hilariante. Mas estava no fim da linha, o seu corpo era uma máquina esgotada. O médico atendeu o telemóvel e, distraído, foi-se afastando até que a sua voz deixou de se ouvir. Sara sorriu. Lembrou-se da frase de Oscar Wilde, perder um pai é terrível, perder os dois é descuido. Qualquer coisa assim, não conseguiu precisar as palavras. O descuido dela era monumental. O pai a rejeitar o pouco ar que o mundo ainda tinha para lhe dar, a mãe na casa de repouso, envelhecida, velha, calada, drogada. Como a Joaninha. O pai contara-lhe tudo.

   A prima Joaninha veio de África – dantes dizia-se assim e ficava-se logo a saber que era nas colónias e que tinha pretos e pronto, as especificidades não importavam – depois de ter sido educada no mato com umas freiras. O tio Francisco trouxera a menina porque, apesar de ser cabrita, era sua filha e não tinha ninguém. A mãe morrera-lhe, vítima de uma mina, num campo por semear. Joaninha ficara com as freiras que evangelizavam o sítio, mas o tio Francisco achou que o mais cristão era trazê-la para Lisboa. Para a confusão de Lisboa. O tio Francisco, depois de ter andado meio ano perdido no mato, tinha umas ideias que eram só suas. A maioria da família temia-o e, quando o temor não era o fundamental, havia razões de comodismo que ditavam distância e silêncio no capítulo dos bons conselhos. Por isso, Joaninha foi arrancada a África, viajou num barco a cheirar a mortos, caixões e caixões empilhados sobre os quais ela gostava de se deitar e imaginar que estava morta, para depois ser sacudida pelos militares que fumavam cigarros e que passavam indiferentes ao despontar do seu corpo de mulher. Joaninha tinha onze anos quando chegou a Lisboa. Viveu nas saias da criada da casa da avó Carminho, em casa de quem o tio Francisco viveu a vida inteira sem considerar idade ou posição.
   Numa tarde de Verão, em pleno Alentejo onde passavam os três meses de férias, Francisco comeu e bebeu até o corpo esticar. O calor infame não se curava a cerveja. Francisco riu-se da sua figura, entrou na piscina municipal. Subiu à prancha mais alta com enorme dificuldade. Mirou a água a reflectir as pastilhas azuis e considerou o pouco que tinha feito depois de ter feito a guerra. Viu dali a sua pequenez e a indisfarçável tristeza de estar vivo. Atirou-se uma vez. Voltou a subir à prancha mais alta. O fundo da piscina pareceu-lhe indefinido. Não percebeu que Joaninha comia um gelado em silêncio junto às escadas da piscina. Ela que nunca dizia nada, que parecia, a cada dia, mais estranha, mais longe, mais africana, ela a gritar

Não!

   E o corpo dele a tombar na água, de chapão, e o organismo a desistir da alma e da mente, a expandir, a explodir, vísceras na água, sangue e mais nada. O fim do Francisco. Um homem morto na água. Joaninha foi mandada para casa de uns primos. Não sabia comer o que eles comiam. Não percebia o que diziam. Tornou-se violenta. Dos 15 aos 16 anos não saiu uma única vez do quarto. Fazia as suas necessidades no chão, não se lavava, não deixava que ninguém lhe tocasse. Foram precisos três enfermeiros para a drogar. Levaram dois dias para limpar o quarto de alto a baixo. Havia pedaços de Joaninha por todo o lado. Num canto excrementos, noutro unhas e peles que ela amontoava como se fizesse colecção de si mesma. Quando acordou estava no Hospital Júlio de Matos. Viveu ali até aos quarenta e nove e, dizem, morreu de tristeza, falando um linguajar que ninguém entendia, arrancando os fios de cabelo devagar, quase com carinho, o indicador e o polegar a puxar, a puxar, a puxar. Sara estava sozinha.
...



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