E-Book, Portuguese, 242 Seiten
Moll / Mileipe O Barão do Café
1. Auflage 2013
ISBN: 978-85-66605-12-9
Verlag: Editora Jaguatirica
Format: EPUB
Kopierschutz: Adobe DRM (»Systemvoraussetzungen)
E-Book, Portuguese, 242 Seiten
ISBN: 978-85-66605-12-9
Verlag: Editora Jaguatirica
Format: EPUB
Kopierschutz: Adobe DRM (»Systemvoraussetzungen)
Vera e Sônia convidam o leitor para uma emocionante viagem ao passado, onde a bagagem e o maior desafio foi trabalhar com fios de memórias, que foram colhendo, tecendo e costurando, pequenos pedaços de lembranças, para reconstruirem um tempo já findo, e encoberto, até então, pela névoa do esquecimento.
Autoren/Hrsg.
Weitere Infos & Material
O IMIGRANTE
cheguei... cheguei... ao longe... de uma caminhada, de uma longa caminhada de lutas e vitórias de lutas em lutas de vitórias e vitórias cheguei até aqui ainda com sonhos aqui e ali. Edy Minhas filhas têm me pedido para tirar a cidadania portuguesa, a que, como neta de português, teria direito, pois assim elas poderiam, a seguir, tirar a delas. Mas, a essa altura da vida, o que mais me convém é ficar quieta no meu canto, não tenho o menor entusiasmo por viagens longas, entrar em avião me deixa em pânico, é verdade que tenho uma vontade imensa de conhecer alguns lugares, muitos deles estão a dois mil, três mil, quatro mil metros acima do nível do mar, e, infelizmente, não tenho saúde nem idade pra enfrentar tais altitudes, sou uma árvore com raízes inexoravelmente presas ao chão, o lugar onde moro é o centro do mundo. Seria esse um dos motivos da minha inércia, mas existem outras dificuldades, como, por exemplo, a falta de documentação, a troca de sobrenome, o corte que ocorreu em relação à família em Portugal e outros problemas que serão bem detalhados no correr do texto. Em abril de 2009, quando fui passar a Semana Santa na fazenda, me ocorreu que era uma boa ocasião para começar esta investigação. Gamboa, meu irmão, me informou que Renan, filho de Beto, nosso primo, tinha feito uma tentativa nesse sentido, ele não sabia qual teria sido o resultado, mas que deveríamos entrar em contato com ele, e assim o fizemos. Sônia, minha irmã, logo se entusiasmou, telefonou para o Júlio, nosso primo, filho mais velho de tio Nelson, que nos indicou o primeiro documento a que teríamos acesso. Ele disse, tenho uma cópia da certidão de óbito de vovô, foi tirada no cartório de Mimoso em 2 de novembro de 1937. Walter, o dono do cartório, sabia da existência da certidão, sabia que tinha tirado uma para Júlio, mas não conseguia localizá-la, e sugeriu, “pergunte ao dr. Hélio, a memória dele é excelente”. Quando liguei, meu tio estava fazendo uma microcirurgia, Lídia, minha prima, garantiu que eu poderia ligar pela manhã bem cedo, “antes das seis ele já está de pé”. Às dez da noite, o telefone toca, é meu tio, que forneceu a data exata da morte de meu avô: 3 de novembro de 1937, e falou ainda sobre a difícil questão de provar a paternidade para os filhos do segundo casamento. Esse é outro ponto delicado, meu avô foi casado em primeiras núpcias com dona Margarida, com ela teve três filhos, mas desquitou-se e foi, posteriormente, viver com minha avó, com quem teve treze filhos; naquela época não havia divórcio, um segundo casamento só era permitido com a morte de um dos cônjuges. Esses treze filhos têm apenas o nome da mãe no seu registro civil, cada filho leva um nome diferente, uns são Carrera, outros Carreira, outros Motta, ou ainda Carreira Motta. A primeira ideia que me ocorreu foi fazer um histórico familiar com os dados que tínhamos em mãos, ainda que prematuro e incompleto seria um começo. Tio Hélio teve uma boa lembrança, meu avô foi sócio da Beneficência Portuguesa de Campos, e fez de todos seus filhos sócios beneméritos dessa instituição de saúde. Procurando nos arquivos, a paternidade poderia ter sido declarada. Ele tinha o comprovante dele, poderia passar lá logo cedo para pegar e tirar xerox. Ocorreu-me outra lembrança: a herança oficial do meu avô cabia aos filhos do primeiro casamento, os únicos reconhecidos por lei, mas ele deixou para minha avó duas propriedades, a Pauliceia e a Inhuma, com as quais ela criou os filhos, os educou e os encaminhou na vida. Como foi feito isso? Tio Hélio me explicou: ele fez uma doação em vida em nome dos filhos, com usufruto para mamãe. Essa é outra prova interessante, seria no cartório de registro de bens em Mimoso que conseguiríamos essa certidão. Se assim fosse, teríamos então a prova da paternidade reconhecida em documento público. O que eu tinha em mãos para redigir o histórico? Memórias familiares, um atestado de óbito, um documento de Sócio Benemérito da Beneficência e uma rede que imediatamente se formou e podia crescer muito. Sou movida pela certeza de pertencer ao clã dos Motta, meu avô morreu muito antes do meu nascimento, a nossa frente e como guia estava a figura de minha avó Mariquinha, a casa dela era o local em que todos se reuniam, essa é a maior referência de família que eu trouxe para a vida, foi em torno dela que estruturei minha personalidade e formei meu caráter. Filhos, genros, noras e netos orbitavam em torno de vovó, ela era uma mulher alegre que gostava de rir, foi esse um dos grandes dons que ela nos legou, fomos criadas, portanto, num matriarcado, nunca acreditei no poder soberano dos homens, a lição primeira que eu aprendi afirmava o poder criativo das mulheres, na minha família os homens é que eram nomeados por elas: Milton da Mariinha, José da Arlete, João da Eny etc. Quando cheguei ao Rio e fui checar os e-mails, lá estava um de Renan, me dando conta de seu interesse em ter o passaporte português. Enviou também o e-mail que passou para o consulado, mas, como havia um entrave, a questão ficou em suspenso. Pela resposta do consulado, realmente se eu obtiver a cidadania, meus filhos terão direito a ela e, me diz Renan, a dificuldade maior está no sobrenome Motta que não coincide com os nomes dos pais dele. Seu Motta teve dezesseis filhos, essa é a conta oficial, não me espanta a quantidade, naquele tempo, homens sexualmente ativos com parceiras jovens e férteis teriam, muito provavelmente, uma prole extensa. O que causa espanto é que todos tenham sobrevivido antes da era dos antibióticos e dos modernos recursos que a medicina e a higiene nos oferecem. Ele não perdeu nenhum filho, esse desgosto não lhe foi dado em vida. É um fato que está diante de meus olhos, seu Motta gozava de boa saúde e escolheu mulheres saudáveis para mães de seus filhos, essa é a primeira evidência com a qual nos deparamos. Seu grande amor ao trabalho, o capital que conseguiu juntar para investir e sua capacidade de gerar recursos permitiram que ele oferecesse à família uma vida saudável com boa alimentação e condições salutares de higiene. O rigor com que ele conduzia seus negócios devia refletir-se na vida privada, exigindo, por outro lado, das companheiras ordem e disciplina na gerência da casa e na criação dos filhos, fatores, sem sombra de dúvida, importantes para a sobrevivência. O cuidado com que ele escolheu a mulher que serviria de mãe adotiva para seus três filhos pequenos merece atenção. Maria da Conceição era filha de imigrantes espanhóis que nunca conseguiram nada além de um trabalho na roça, a moça era, portanto, pobre, acostumada ao trabalho, ainda que outro atributo a distinguisse, era bonita. Na história da humanidade, a beleza sempre caminhou de páreo com o dinheiro. A moça não conhecia luxos, nem roupas caras nem tinha quem se ocupasse dela, cumulando-a de mimos e cuidados. A pele clara e lisa, os cabelos pretos e brilhantes, a largura dos quadris, a sinuosidade do corpo e o porte elegante eram dotes da natureza e indícios de boa saúde e vitalidade. Além desses dotes físicos, era alegre, simpática e muito jovem, uma escolha plena de acertos. Maria da Conceição, chamada de Mariquinha, apesar de muito jovem, era viúva, casou-se com a idade de treze anos e em poucos meses perdeu o marido. Por sua condição, seria considerada responsável por sua própria sobrevivência, teria, numa conta provável, de trabalhar na roça para se sustentar, enfrentado o cabo da enxada debaixo do sol inclemente dos trópicos. A filha que voltava para casa não descansaria nas costas dos pais, mas, em virtude da beleza, da juventude e do seu gênio afável, constituía-se no principal capital da família Carrera, podendo garantir-lhes uma condição estável e confortável de vida. Eis que a sorte lhes vem bater à porta na pessoa do próprio dono das terras onde trabalhavam: casamento na igreja não podia oferecer, homem separado que era, mas estava disposto a tomar conta dela, viveriam como se casados fossem, que não se preocupassem, eles também fariam parte da família, ele não deixaria que lhe faltasse o necessário. Com o propósito de redigir o histórico da família, começamos Sônia e eu a colher informações que nos permitissem ir além dos relatos que ouvíamos desde a infância e que faziam parte do imaginário dos Motta. Queríamos dados concretos com os quais pudéssemos nos apresentar diante do consulado como pleiteantes da cidadania portuguesa. Sabíamos que Julio vinha realizando pesquisa sobre a história e a origem da família, recorremos a ele, que gentilmente partilhou conosco alguns achados pessoais. Sabíamos agora que nosso avô era natural da região de Oliveira d’Azeméis, e lá deixou o pai, Antonio José da Silva, a mãe, Anna Gomes Pinho, e três irmãs: Ana, Maria e Joana. Que profusão de dados tínhamos em mãos! O que desconhecíamos era que nossos propósitos fossem mais extensos do que a simples obtenção da cidadania portuguesa, e ficou evidente que o desejo da família de contar a sua história continuava não só latente, mas era por ele que nos movíamos; não caminhávamos para fora em busca de reconhecimento, mas para o interior de nós mesmas em busca da fonte em que fomos geradas e engendradas, aquela que nos deu a vida, nos moldou o caráter e a...